“A CARRUAGEM FANTASMA”, UM PRIMOR DO MEDO. Em 1912, três anos após ganhar o Nobel de Literatura, a escritora sueca Selma Lagerlöf publicava “Körkarlen”, que seria traduzido para o português como “O Carroceiro da Morte”. Algum tempo depois, no primeiro dia de 1921, estreava na Suécia “A Carruagem Fantasma”, que seria consagrado pela História como um dos filmes mais importantes de toda a existência do cinema. A partir do texto de Lagerlöf, o cineasta Victor Sjöström – na época já ator e diretor dos mais conceituados – desenvolveu esta verdadeira preciosidade lançada agora em DVD pelo selo Obras Primas do Cinema. Misto de horror, fantasia e drama, a história começa com a enfermeira Edit (Astrid Holm), que em seu leito de morte pede desesperadamente para ver um certo David Holm. A partir daí, um longo flash back revelará a lenda que dá título ao filme, sobre uma lúgubre carruagem e seu carroceiro fantasma encarregado de coletar as almas das pessoas à beira da morte. O fardo do carroceiro é tão cruel que cada dia de trabalho tem, para ele, o mesmo peso de um século vivido na Terra. Sua única salvação para se livrar da terrível função é buscar a alma de alguém que tenha morrido exatamente na passagem do ano novo, para que ela se torne o novo carroceiro fantasma. Mesmo com todas as limitações técnicas da época, as imagens são impressionantes até hoje. Utilizando-se com extremas precisão e sensibilidade de simples fusões e sobreposições, Sjöström (que além de roteirista e diretor também interpreta David Holm) cria um denso e profundo clima de horror em sua obra. O dolorido ranger da carruagem que chega anunciando a morte potencializa o terror e o desespero. Não por acaso, seu famoso compatriota Ingmar Bergman, anos depois, abertamente se inspiraria em Sjöström em marcantes momentos de sua extensa filmografia, como a figura da morte em “O Sétimo Selo” e o ranger das rodas em “Morangos Silvestres” (vale lembrar também - por que não – o som do carro de boi no início de “Vidas Secas”). Não seriam estas as únicas influências causadas por “A Carruagem Fantasma”. Stanley Kubrick bebe na fonte de Sjöström na famosa cena em que Jack Nicholson, ensandecido, derruba uma porta a machadadas. Mas, justiça seja feita, o próprio Sjöström, nesta cena, teria bebido na fonte de “Lírios Partidos”, que Griffith realizara dois anos antes. Se a primeira parte de “A Carruagem Fantasma” é um primor do medo no cinema, sua continuidade é de uma dramaticidade ímpar. Vidas desperdiçadas, paixões rompidas, lares destruídos pelo alcoolismo e pela vingança, a busca pela redenção através da religiosidade, um mar de torturas morais assombrando personagens que se vêm fragilizados diante das adversidades e acabam sucumbindo à marginalidade. Um dramalhaço de disparar o coração. Considerado o pai do cinema sueco, Sjöström teve uma carreira longa e próspera. Escreveu mais de 25 filmes, dirigiu mais de 50 e atuou em mais de 40. Trabalhou até 1957 (inclusive como ator em “Morangos Silvestres”), é respeitado como um dos grandes mestres da sétima arte, e faleceu aos 80 anos, em 3 de janeiro de 1960. Sorte: por três dias, quase ele se torna um cavaleiro fantasma.

Carapirú é um índio nômade que escapa de um ataque surpresa de fazendeiros. Durante dez anos, anda sozinho pelas serras do Brasil central, até ser capturado em novembro de 1988, a 2 mil quilômetros de seu ponto de partida. Levado a Brasília pelo sertanista Sydney Possuelo, ele vira manchete nacional e centro de uma polêmica entre antropólogos e lingüistas quanto a sua origem e identidade.

“A FALECIDA”: FUTEBOL ACIMA DE TUDO, HIPOCRISIA ACIMA DE TODOS. No Brasil de Nelson Rodrigues, ninguém presta. A cartomante cobra ilegalmente pelos seus serviços e atende os clientes escondida da política. O dono da funerária recebe informações privilegiadas do jornalista que fica sabendo antes de todos das mortes acontecidas na cidade, o que lhe facilita a venda de caixões. O próprio funcionário da mesma funerária não hesita em assediar uma cliente que quer encomendar um rico enterro. A dona de casa beata e religiosa trai o marido com um poderoso empresário (contraventor, claro), que por sinal também é casado. Ela fica feliz ao saber que sua prima – mais bonita – tem câncer. Enquanto isso o marido traído, desempregado, está muito mais preocupado com a final entre Vasco e Fluminense que com a própria esposa. Em “A Falecida”, a protagonista (Fernanda Montenegro, perfeita) busca na morte a realização do que foi incapaz de encontrar em vida. Como uma espécie de autopunição pelos “pecados” passados, apoia-se na religião e na procura pela doença para expiar a mediocridade de sua existência. A ela só resta morrer, mas com um funeral que faça inveja a todos os que ficam. Já o marido (Ivan Candido) é o protótipo da alienação, movido a motivado a álcool, sinuca e futebol. A contusão do ídolo de seu time na véspera da decisão do campeonato lhe soa a tragédia. Uma decisão, aliás, que rende ao filme uma belíssima cena final. O afiado elenco ainda traz Nelson Xavier, Paulo Gracindo, Joel Barcelos, uma pequena participação de Hugo Carvana e uma brevíssima aparição de José Wilker na cena final. Todos sob a direção impecável de Leon Hirszman com roteiro do próprio diretor em parceria com Eduardo Coutinho, antes de se tornar um dos maiores documentaristas do Brasil. Trilha de Radamés Gnatalli, fotografia de José Medeiros e câmera de Dib Lutfi ajudam a coroar a obra. Em “A Falecida”, hipocrisia, traições, mau-caratismo, falso moralismo, o futebol acima de tudo e a cerveja acima de todos comandam as ações deste Brasil 1950/60 que talvez seja mais contemporâneo do que se pensa.

O TRISTE BRASIL RETRÓGRADO DE “PORTO DAS CAIXAS”. “Do que adianta a gente ser campeão do mundo se a gente não tem feijão?”, pergunta o embriagado manifestante de um comício político em Itaboraí, Rio de Janeiro, no Brasil de 1963. Perto dali, num canto esquecido do mundo chamado Porto das Caixas, uma bela e infeliz mulher (a argentina Irma Alvarez, ótima) tenta encontrar algum sentido em sua vida miserável. Uma fuga, talvez. Mas num país retrógrado e machista, tal sentido só pode se realizar através de um homem. Seja seu intolerante marido (Paulo Padilha), seja o dono da venda que troca mercadorias por sexo (Reginaldo Faria), seja qualquer um. Contudo, nem ela própria sabe a força que tem. Com argumento de Lucio Cardoso e roteiro e direção de Paulo Cesar Saraceni, “Porto das Caixas” une a vida em ruínas da protagonista às ruínas literais do soturno e decadente vilarejo que dá nome ao filme. Tudo magnificamente fotografado por Mário Carneiro. Ao pungente visual se une a nostálgica trilha sonora de Tom Jobim, com o próprio compositor ao piano. Irma Alvarez assume ares de Anna Magnani neste Brasil em preto e branco, então bicampeão mundial de futebol, cujo cinema se deixava influenciar magistralmente pela beleza da linguagem do Neorrealismo Italiano que tanto encantava as plateias desde 20 anos atrás. Um grande momento do nosso cinema, em que a situação de miséria dos personagens é tanto financeira como moral. E, pelo visto, eterna.